A
consciência - João Ventura (Portugal)
Foi
durante o período antes da ordem do dia que o deputado deu por falta
da sua consciência. Procurou nos bolsos, na pasta, mas não a
encontrou. Ficou preocupado.
Na primeira oportunidade, saiu do hemiciclo e foi à secção de perdidos e achados. Perguntou ao funcionário se alguém teria encontrado uma consciência. Fizeram-no entrar pela porta ao lado do guichet e levaram-no a um compartimento onde havia guarda-chuvas, telemóveis, muitos dossiers, muitos envelopes A4 de papel castanho, e numa prateleira ao fundo algumas consciências.
- Essas estão aí porque os donos nunca vieram procurá-las.
O deputado observou mas nenhuma era a sua. Notou no chão uma caixa fechada. Perante o seu olhar interrogativo, o funcionário disse:
- Aí dentro estão vergonhas. Há pessoas que perdem a vergonha. E nunca vêm cá à procura dela. Vergonhas e consciências que não são reclamadas, ao fim de um ano são incineradas.
O deputado apalpou o bolso e suspirou aliviado. Ainda tinha a sua vergonha. O problema era a consciência.
Agradeceu ao funcionário e saiu à procura, pensando onde diabo poderia ter deixado a consciência.
Na primeira oportunidade, saiu do hemiciclo e foi à secção de perdidos e achados. Perguntou ao funcionário se alguém teria encontrado uma consciência. Fizeram-no entrar pela porta ao lado do guichet e levaram-no a um compartimento onde havia guarda-chuvas, telemóveis, muitos dossiers, muitos envelopes A4 de papel castanho, e numa prateleira ao fundo algumas consciências.
- Essas estão aí porque os donos nunca vieram procurá-las.
O deputado observou mas nenhuma era a sua. Notou no chão uma caixa fechada. Perante o seu olhar interrogativo, o funcionário disse:
- Aí dentro estão vergonhas. Há pessoas que perdem a vergonha. E nunca vêm cá à procura dela. Vergonhas e consciências que não são reclamadas, ao fim de um ano são incineradas.
O deputado apalpou o bolso e suspirou aliviado. Ainda tinha a sua vergonha. O problema era a consciência.
Agradeceu ao funcionário e saiu à procura, pensando onde diabo poderia ter deixado a consciência.
Menino-Peixe
- Americo Ayala Jr. (Brasil)
O
menino amava o mar mais que tudo. Queria até ser peixe: um golfinho,
como os que brincavam com ele na enseada, quando fingia ser um
deles...
Agora, sentado perigosamente à beira do penhasco que lhe permitia a visão de todos os horizontes, nem podia imaginar que nos próximos 17 minutos, no exato instante em que aquele imenso disco vermelho-alaranjado começasse a ser engolido pela distância, o penhasco se faria mar, e ele seria golfinho, finalmente.
Agora, sentado perigosamente à beira do penhasco que lhe permitia a visão de todos os horizontes, nem podia imaginar que nos próximos 17 minutos, no exato instante em que aquele imenso disco vermelho-alaranjado começasse a ser engolido pela distância, o penhasco se faria mar, e ele seria golfinho, finalmente.
O
plano arquitetónico minuciosamente ajustado e concretizado da cidade
de Xanadu-Al - José Eduardo Lopes (Portugal)
Xanadu-Al
era uma cidadezinha de província, que começou por ser como todas as
cidadezinhas de província, sem origem certa e com uma
mais-do-que-certa-ausência-de-futuro. Mas a mão do homem contrariou
esse aparente determinismo.
Ou a mão do sátrapa anatólico de Xanadu-Al. Gizando planos arquitetónicos fabulosos para a cidadezinha, deu ordens para que se iniciassem de imediato as obras.
E elas arrancaram, com um brilho e uma ambição desmedidas.
O alcatrão das ruas foi coberto por placas ovais de obsidiana, fundidas umas às outras com cordões de chumbo derretidos por feixes de Laser.
Um canal subterrâneo desviou da superfície o rio de águas lodosas que os gangsteres costumavam alimentar com os cadáveres resultantes das suas incessantes vendettas.
O cristal e o jaspe branco vestiram com novas roupas os prédios modernos mas esteticamente desajustados.
Os plátanos e os álamos antigos foram substituídos por árvores de zircão e ouro, onde pássaros mecânicos enchiam os ares com os seus cânticos.
Deixaram de existir portas fechadas em Xanadu-Al e todas as portas das casas se abriam para vestíbulos inundados de luz e das fragrâncias do incenso.
Os animais de estimação passeavam-se livremente pelas avenidas e pelos parques de árvores artificiais.
Xanadu-Al tinha TUDO para que alguém se sentisse feliz em viver dentro dela.
Mas Xanadu-Al não tinha ninguém. Já não existiam ali pessoas.
O sátrapa anatólico de Xanadu-Al teve de as vender, e aos seus bens, para custear as obras.
E teve de inciar as obras para dissimular as vísceras da cidade que começavam a sair pela boca dos túneis e pelas chagas no alcatrão das avenidas.
Ou a mão do sátrapa anatólico de Xanadu-Al. Gizando planos arquitetónicos fabulosos para a cidadezinha, deu ordens para que se iniciassem de imediato as obras.
E elas arrancaram, com um brilho e uma ambição desmedidas.
O alcatrão das ruas foi coberto por placas ovais de obsidiana, fundidas umas às outras com cordões de chumbo derretidos por feixes de Laser.
Um canal subterrâneo desviou da superfície o rio de águas lodosas que os gangsteres costumavam alimentar com os cadáveres resultantes das suas incessantes vendettas.
O cristal e o jaspe branco vestiram com novas roupas os prédios modernos mas esteticamente desajustados.
Os plátanos e os álamos antigos foram substituídos por árvores de zircão e ouro, onde pássaros mecânicos enchiam os ares com os seus cânticos.
Deixaram de existir portas fechadas em Xanadu-Al e todas as portas das casas se abriam para vestíbulos inundados de luz e das fragrâncias do incenso.
Os animais de estimação passeavam-se livremente pelas avenidas e pelos parques de árvores artificiais.
Xanadu-Al tinha TUDO para que alguém se sentisse feliz em viver dentro dela.
Mas Xanadu-Al não tinha ninguém. Já não existiam ali pessoas.
O sátrapa anatólico de Xanadu-Al teve de as vender, e aos seus bens, para custear as obras.
E teve de inciar as obras para dissimular as vísceras da cidade que começavam a sair pela boca dos túneis e pelas chagas no alcatrão das avenidas.
Os
bons ouvintes - Angela Schnoor (Brasil)
Doente,
sem trabalho e muito só, passou a visitar o cemitério todos os
dias. Sentada nas frias lápides, conversava com os falecidos.
Chamando-os pelo nome, contava suas histórias e mágoas. Quando
melhorou, passou a fazer melhorias e enfeitar os túmulo. Era como se
pagasse ao analista.
Narciso
- João Ventura (Portugal)
Narciso
cansou-se de se mirar em charcos e ribeiros. Tornou-se urbano e
arranjou um emprego. Polidor de espelhos!
O patrão estava feliz. Nunca lhe tinha aparecido um empregado apaixonado pelo trabalho. Até fazia horas extraordinárias de graça!
Um dia Narciso fez uma experiência. Esperou com ansiedade pela saída dos restantes empregados e do patrão. Pegou nos últimos dois espelhos que tinha polido, cada um com dois metros de altura por um de largura (encomendados por uma loja de pronto-a-vestir) e posicionou-os em frente um do outro, as superfícies tão paralelas quanto possível. Descalçou os sapatos e as meias, despiu a roupa e, completamente nu, colocou-se no meio dos espelhos.
Quando olhou a sua imagem multiplicada até ao infinito, uma onda de prazer com uma intensidade que não supunha possível fez vibrar cada nervo do seu corpo, fez ressoar cada neurónio do seu cérebro...
Morreu de overdose.
O patrão estava feliz. Nunca lhe tinha aparecido um empregado apaixonado pelo trabalho. Até fazia horas extraordinárias de graça!
Um dia Narciso fez uma experiência. Esperou com ansiedade pela saída dos restantes empregados e do patrão. Pegou nos últimos dois espelhos que tinha polido, cada um com dois metros de altura por um de largura (encomendados por uma loja de pronto-a-vestir) e posicionou-os em frente um do outro, as superfícies tão paralelas quanto possível. Descalçou os sapatos e as meias, despiu a roupa e, completamente nu, colocou-se no meio dos espelhos.
Quando olhou a sua imagem multiplicada até ao infinito, uma onda de prazer com uma intensidade que não supunha possível fez vibrar cada nervo do seu corpo, fez ressoar cada neurónio do seu cérebro...
Morreu de overdose.
Teste
- Eduardo Oliveira Freire (Brasil)
Havia
um cálice de ouro e uma cumbuca de barro. Um agiu com impulso e
pegou o primeiro. O outro usou a cabeça escolhendo a segunda. O
primeiro foi salvo e o segundo perdeu pois testavam a sinceridade das
ações.
O
Corpo... - Eduardo Oliveira Freire (Brasil)
Boiando
na piscina do prédio continuou na cabeça de Carlinhos. No início,
ele ficou com raiva do corpo porque a piscina ficou interditada e não
podia mergulhar com os amigos. Mas o ódio persistiu já que o corpo
lhe revelava algo. Sentiu perder sua coragem indômita e culpava o
corpo por isso.
Já conhecia o conto 'A consciência', magnífico! Uma prazer reler e, infelizmente, perceber que não tem fronteiras, a perda da consciência parece ser um mal universal
RispondiEliminaNarciso é excelente! Uma seleção de alto nível, parabéns aos editores.
Obrigado, Angela. Saudações
EliminaJV